Diário da América do Sul em bicicleta reclinada – II

02.11 – Bojuru – São José do Norte

Acordamos com o chão seco. Ao pequeno-almoço de cereais no quarto segue-se uma torrada na lancheria em frente. Após a chuva, hoje é o vento contra que nos espera, já sabemos. Avançamos a custo, tentando seguir numa linha direita.

Pedalando contra o vento

Almoçamos após 40km num banco atrás de arbusto que nos protege do vento. Ignoramos os rastos deixados por um cavalo no chão, pois não há alternativas. Os últimos 5km são peníveis, com vento lateral tempestuoso que nos empurra para o meio da estrada e mais trânsito. Temos o corpo coberto de pó quando chegamos a São José do Norte. O rio transformado em mar salta para a estrada, os barcos para Rio Grande estão acostados.

Porto quase inundado

Num café repousamos um pouco e informamos-nos sobre opções de hospedagem. Depois de vistoriar duas pousadas ainda não estamos contentes. Neste momento um homem – que numa primeira impressão seria um sem abrigo ou com problemas com álcool – nos acerca e sugere duas outras pousadas que seriam boas. “Limpas?”, pergunto sem saber se poderia confiar na resposta. “Sim, muito boas”. Vamos à pousada Nossa Senhora da Paz, onde somos muito bem recebidos e o quarto, com o desconto pedido (no Brasil temos sempre que pedir desconto), é limpo, com bastante luz e ao nosso preço habitual de 100 reais. Para jantar vamos a um buffet ao kilo, onde pela primeira vez no Brasil comemos peixe.

03.11 -São José do Norte – Rio Grande

Acordamos pela primeira vez sem despertador, são 7h. Hoje é um dia de descanso e vamos apenas até Rio Grande, do outro lado do estuário. O pequeno almoço da pousada é simples. Despedida dos proprietários da pousada e pedalamos até ao cais, com água a poucos centímetros dos pés. A gentileza da gente indica onde devemos levar as bicicletas, mesmo sem pedir ajuda. Ajudam a embarcar as bicicletas e, às 9:30, partimos.

Bicicletas em direcção a Rio Grande

Rio Grande é uma cidade com bastantes edifícios do tempo dos portugueses, grandes, bonitos embora infelizmente, vários abandonados. Dirigimos-nos ao Paris Hotel, um desses velhos edifícios. Algumas opiniões do tripadvisor faziam temer a qualidade. São apenas 10:30 da manhã quando fazemos check-in. Deixam nos escolher o quarto, o maior até hoje, com mesa e duas cadeiras para poderemos escrever o blog. Passeamos até ao pequeno mercado onde almoçamos e damos uma volta na cidade. Remarcamos como estes edifícios antigos aqui no Brasil seriam considerados recentes na Europa.

Paris hotel, onde ficámos hospedados
Edíficios do tempo dos portugueses, agora fechados

Abastecemos para os próximos 230km onde nos dizem que não vamos encontrar lojas. Para jantar experimentamos um “galeto”, num restaurante de menu fixo onde mal se senta começam a trazer travessas de comida para a mesa e vão substituindo quando estas ficam com menos de metade de comida. Foi bom, mas não valeu o preço, o dobro de um jantar mais simples. Na mesa à frente está uma família – pais, com 3 crianças e a nounou. Gostámos de analisar a interacção (ou falta dela) entre os vários membros: parecia a refeição da família estar a meio quando pagaram e foram embora. Regressamos ao hotel a pé, por ruas desertas que indicam ser perigosas, embora nada de suspeito seja visto.

04.11 – Rio Grande – depois da reserva de Taim

O upload das fotografias para a cloud não passou a metade, após termos deixado o computador toda a noite a funcionar. Partimos às 8:30 através da cidade e subúrbios até entrar na via rápida em direcção a Pelotas.

Pista ciclável à saída de Rio Grande

A larga faixa de emergência permite ir descansados até, cinco quilómetros depois, virar para Chuí, na BR-471. Há mais tráfego que esperávamos e temos de ir em fila indiana. Um ciclista hispanófono com mochila às costas ultrapassa sem dizer mais que “Hola”. Por volta dos 60km, almoçamos junto à estrada, toalha no chão.

Uma mensagem ao longo da estrada

Pouco depois, na vila de Taim, paramos num bar/mercearia para uma coca-cola fresca. Passamos a reserva ecológica com os caipivara, o maior roedor do mundo, que pode ter até 90kg! Tiramos bastantes fotografias pois eles são às dezenas nos campos protegidos da estrada por uma cerca.

Caipivaras em comparação com outros pássaros
Caipivara com caipivarinhos
E um dos pássaros

Mesmo assim há vários atropelados ao longo do caminho. O som dos pássaros, as vacas, muitas vacas, são nossa companhia nos 115km desta etapa, a mais longa da nossa viagem. No quilometro 563 da estrada vemos a placa para a zona de descanso/camping que a Eva tinha descoberto na internet. O portão está fechado, mas abrimos e avançamos.

Fim da etapa da 115km

Uma centena de metros mais à frente um homem de certa idade, em fato de treino a mostrar metade do rabo recebe-nos. Ficamos por 30 reais pela noite. O local é bonito, com um pequeno lago; as instalações sanitárias simples e limpas. Há uma vaca, um bezerro, um cavalo, cães e galinhas que passeiam na zona de instalar a tenda. Somos mais uma vez os únicos clientes. O dono ainda propõe que utilizemos um pequeno quarto, mas à vista do rectângulo de espuma que serve de colchão preferimos a nossa tenda. “A electricidade está em falta, poderá vir mais tarde. A cozinha não tem gás”, diz. Tomamos então banho frio e cozinhamos com a nossa benzina na mesa exterior (coisa que quase sempre nos faltou nos campings na Europa). Compramos uma alface, duas cervejas e três ovos à proprietária. A quinta associada ao campismo produz legumes e tem também ovelhas, patos, e um porco sem teta e um bezerro sem mãe, que tomam leite de biberon. Quando terminamos o jantar vem o dono com uma cadeira instalar-se junto a nós. Conta que no Brasil há muito gatuno e ladrão e que nunca aceita motociclista e ciclista porque esses são a quem não se pode fazer confiança. Somos os primeiros ciclistas que deixa entrar, porque somos casal e falamos português. A conversa com o dono continua, com saudosismos da ditadura militar. Felizmente não dura muito até partir. Nós partimos também para os sacos cama.

05.11 – depois da reserva de Taim – Santa Vitória de Palmar

Caiu imensa humidade durante a noite e a tenda está molhada. O exterior do saco cama também, assim como as bicicletas. Para além disso a erva pica mesmo através do chão da tenda. A arrumação demora 2h30. Quando partimos o céu está azul e anuncia calor. Aos 15km paragem para o segundo pequeno-almoço numa estação de serviço: torrada completa e café com leite. O dia é cansativo e monótono, tirando dois camiões que passam por nós com manobras perigosas. Almoçamos numa paragem de autocarro em frente a uma estação de serviço. Dois trabalhadores vêm conversar – um, o Jefferson de Miranda Gomes que é electricista de alta tensão, gosta de bicicletas para além de fazer arcos com flecha, fala bastante connosco. Damos o nosso contacto do blog. A conversa no Brasil desvia rapidamente para as origens portuguesas da família e dos perigos do Brasil. Depois de almoço são dezenas de quilómetros sem lugar para descansar. As pequenas paragens à beira da estrada servem que para nos hidratarmos. No km 100 da etapa há uma estação de serviço. Bebemos uma coca-cola, comemos uma sandes. Mais 13km e chegamos a Santa Vitória de Palmar, uma cidade já com cheiro a fronteira. Fazemos o tour pelos hotéis e ficamos pelo Hotel Turismo, pelos típicos 100 reais. Pomos a tenda e sacos cama a secar na corda do pátio e vamos jantar buffet.

Tenda a secar em frente ao nosso quarto

Gostaria de beber ainda uma caipirinha mas a ocasião não se apresentou. O quarto no regresso cheira a mofo. Nunca há aeração suficiente. Estamos intrigados se no Uruguai os hotéis serão melhores.

06.11 – Santa Vitória de Palmar (Brasil) – Parque Santa Teresa (Uruguai)

Partida de Santa Vitória de Palmar

Domingo com acordar e partida mais tardia. O vento hoje viaja connosco. No Chuí recebemos o carimbo de saída do Brasil, antes de entrar na cidade tax free que tem no centro de um lado lojas brasileiras e do outro as congéneres uruguaias. Há movimento, gente nas compras.

Avenida central que fica na linha de fronteira entre o Brasil e o Uruguai

No lado de lá vemos um posto de turismo que nos fornece algumas informações e um mapa das estradas. Tentamos, sem sucesso, retirar dinheiro. Trocamos os nossos 100 reais por 850 pesos e gastamos metade num novo protector solar. O grande choque vem das pessoas, que agora ousam sem abébias tocar nas bicicletas, enquanto tiram fotografias. Depois de achar os brasileiros mais discretos que esperado, os Uruguaios parecem sair aos seus colonizadores e olharem com as mãos. Passado a cidade, passamos a aduana uruguaiana.

Entrada oficial no Uruguai

O ambiente muda, há pequenas colinas, os carros são mais pequenos e alguns são boas relíquias do passado em estado variável, sempre com um barulho de quem tenta e não consegue ir mais rápido. No entanto os carros pequenos recentes andam mais rápido que no Brasil.

Alguns quilómetros mais tarde chegamos ao parque Nacional de Santa Teresa, com um forte edificado pelos portugueses e reconstruído mais tarde pelos espanhóis.

Subida! para o forte de Santa Teresa

Seguimos depois para o suposto parque de campismo, du qual não encontramos entrada, mas apenas marcações de lugares de acampar vazios ao longo da estrada. Decidimos ir à recepção do parque, administrado pelo exército. Depois de pagar os 300 pesos, restam-nos uma nota de 100 (3 euros). Informam que multibanco só no verão e que as lojas/restaurantes no parque não aceitam cartões. O multibanco mais próximo foi o que passámos há 20km e o seguinte fica a 50km… Bom, ficamos serenos e vamos à procura do local para acampar. Próximo de onde tínhamos estado antes vemos finalmente algumas roulottes e tendas. Decidimos ir ver a praia e tomar banho de mar, algo que ainda não tínhamos feito desde que chegamos a este lado do Atlântico.

Primeiro banho de mar no Uruguai

A água está fria como em Portugal. Junto à praia passamos num restaurante a perguntar se porventura aceitam cartões. Negativo. “Y dólares?”. Positivo. “Pero…” fecham daqui uma hora, não servem jantares. Pedimos duas doses de frango com arroz, que depois aqueceremos e uma cerveja. O empregado oferece um tomate e limão para a salada e condimento. Vamos buscar os nossos dólares transportados para as emergências, a refeição sai cara, mas ao menos teremos comida e agora mais alguns pesos para sobreviver. Instalamos a tenda perto de uns balneários. Vou tomar duche e encontro tudo cheio de folhas. Os balneários estão fechados e sem água.

Tenda instalado perto dos duches… fechados

Parto de bicicleta e pedalo algumas centenas de metros em busca dos balneários abertos. Ao encontrar, fico indeciso se tomar duche. Não há nenhuma porta, estão em estado decadente e não devem ter sido limpos desde há dias. Os duches com água quente só têm água fria. Tomo um banho rápido e escapo. A Eva decide nem lá por os pés. Em vez disso pegamos na tenda e mudamos para perto de uma torneira onde a Eva se lavará, num local menos abrigado. Aquecemos o arroz com frango. Anoitece. Lavamos a loiça, preparamos o pequeno almoço. Não nos sentimos limpos quando nos deitamos. Amanhã será um outro dia.

07.11 – Parque Santa Teresa – Castillos

A noite é calma. Acordamos ao som das gotas de humidade acumulada a cair das folhas das árvores sobre a tenda. Mesmo com a humidade do ar, do corpo e da tenda, a partida foi rápida. A neblina vai desaparecendo quando nos aproximamos de Punta del Diabo. Uma vila de praia praticamente deserta para o Inverno. Com muitas casas para alugar com janelas fechadas, hostels e restaurantes fechados.

Punta del Diablo
Punta del Diablo

Apenas dois supermercados abertos. Vemos a vista e compramos comida. Descobrimos que os iogurtes no Uruguai têm todos farinha de milho, malto-dextrose e gelatina. Enfim. Repartimos em direcção de Castillos, onde deve haver o almejado multibanco. Estão 30 graus e muita humidade. Suamos sem fim e só sonhamos com um bom duche. Ao chegar vamos directamente ao banco República. Há 6 ou 7 pessoas em fila para retirar dinheiro. O cartão suíço volta a ser recusado. Saímos o cartão alemão. Estamos salvos, temos dinheiro. Vamos ver o único hotel da vila e escolhemos um quarto com casa de banho, mesmo sendo para lá do orçamento habitual. Pedimos para lavar roupa. Só serviço de lavandaria… Perguntamos o preço e o prestável recepcionista telefona à pessoa que informa ser 35 pesos por “prenda”. Seria um pouco menos de um euro, o que achamos ridiculamente barato para uma máquina da roupa mas aceitamos. Cinco minutos depois temos uma senhora à porta do quarto. Rapidamente despimos a roupa do dia para juntar ao saco e damos a lavar. Tomamos um bom duche, melhor que qualquer um no Brasil. O standard de hotéis no Uruguay parece ser semelhante ao de Portugal. Enquanto a Eva descansa vou ao supermercado. A senhora da roupa regressa duas horas depois. “São 600 pesos”. Os 35 pesos eram por peça de roupa! Mesmo tentando explicar que percebemos mal, que era caro, a senhora explicou que só utiliza “Skip” e não detergente brasileiro, que custa 500 por 3 litros e que a electricidade da máquina de secar é cara. Foi a nossa lavagem de roupa mais cara de toda a história das nossas viagens. Para jantar vai ser complicado. O restaurante do hotel está fechado e as alternativas propostas não servem jantares. Salva-nos a senhora de uma geladaria que nos aponta para uma pizzaria que estará eventualmente aberta. Satisfeitos com a pizza e um litro de cerveja mas cansados, dormimos como uns anjos.

Vila de Castillos
Detalhe das tomadas triplas no Uruguai

08.11 – Castillos – La Pedrera

Decidimos dormir até mais tarde. Os nossos relógios marcam 8:15 quando descemos para o pequeno almoço. Fraco como tem sempre sido: café, leite, pão de forma, manteiga, doce, iogurte líquido e pseudo-sumo de laranja. Vemos no relógio de parede que são 7:15 e dizemos que se esqueceram de mudar a hora. A Eva olha para a televisão que no rodapé marca também 7:15. O recepcionista confirma. São 7:15. Afinal o Uruguay tem uma hora a menos que o Brasil! O sol levanta-se às 5:30 e ainda só estamos na primavera. Entendemos agora porque vimos as crianças a sair da escola às 20h e porque nos disseram que era muito cedo para jantar… Levantamos mais dinheiro, compramos pão e partimos para o litoral. Poucos quilómetros depois passamos a fasquia dos 5’000km de viagem. Foto. Mais tarde paramos em Valizas para o segundo pequeno almoço no terraço de um restaurante de praia fechado. É uma vila com ar simpático, algumas pessoas nas ruas, mas novamente sem nada aberto para o turista.

Casa ao longo da estrada
Segundo pequeno-almoço na esplanada da praia

Não vamos a Cabo Polónio, uma das atracções do Uruguai, que nos parece demasiado turístico. É uma vila isolada, sem electricidade, que se tem de ir 8km a pé ou de jipe pelas dunas. Mas há uma dezena de hotéis e hostels! Por caminho quase arenoso vamos até Oceania del Polónio, onde almoçamos no terraço de uma casa de férias fechada. A estrada passa agora junto a vários pântanos, com vacas e pássaros.

Saída da escola
As rectas já sobem e descem ligeiramente

Chegamos a La Pedrera, outra vila de praia mais fechada que aberta. No supermercado indicam que o hostel Pedra Alta está aberto. Escolhemos o quarto e decidimos ficar duas noites. Compramos jantar – não há restaurantes abertos – metemos a escrita em dia e cozinhamos. Por uma vez não estamos sozinhos. Há mochileiros de Espanha e do Brasil.

09.11 – La Pedrera

Dia de descanso. O pequeno almoço self-service. Vamos até à praia do Barco, onde a proa em ferro enferrujado de um navio que ali encalhou em 1971 continua como escultura. O dia está coberto. No hostel os outros hóspedes partem.

Praia do barco, com a proa do dito encalhada na areia

Com a ajuda de Rossio, a recepcionista, fazemos um chá matte, amargo. Passamos o resto do dia em frente aos écrans e a decidir o que fazer nos próximos dias. O vento não parece estar de feição para os ciclistas indo para Sul.

10.11 – La Pedrera

Decidimos ficar um novo dia. Preferimos passar o dia perto do mar que sofrer na estrada com vento contra. Vamos até La Paloma, a cidade de praia a 10km, para tentar encher o pneu de trás da bicicleta da Eva que tinha perdido algum ar. Num “bicicleteiro” ao abrir a válvula, esta salta. Devia ser a origem do problema. Voltamos a bem apertar, enchemos bem o pneu e vamos dar uma volta. Miguel brinca um pouco na half-pipe com a bicicleta. Compramos uma sandes e voltamos para La Pedrera onde tomamos banho de mar antes de engolir a comida. De tarde Miguel tenta sem muito sucesso limpar a corrente da bicicleta e passamos o resto do tempo em frente aos écrans, até ir jantar a um restaurante que abriu finalmente hoje.

Diário da América do Sul em bicicleta reclinada – I

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